sexta-feira, 7 de setembro de 2012

O álcool de minha avó




(Um cheiro de lobby)

Minha avó sempre recomendava após a picada de um inseto: “Passa
álcool”. Tinha aprendido com a mãe dela, minha bisa. O vidro de álcool,
hoje de plástico, ficava bem à mão e servia de remédio para um monte
de coisas com suas mil e uma utilidades, como essa palha de aço da
propaganda.
De repente vinha aquela coceira incômoda ou a vermelhidão
no braço ou no pescoço – e dá-lhe álcool líquido. Ardia, mas resolvia.
Minha avó conhecia bem as propriedades antibacterianas, antissépticas e
desinfetantes do álcool – e passou a sabedoria à minha mãe, que repassou à
minha irmã, que a repassará à filha, que vai explodir e passará para o outro
mundo, segundo a Anvisa, que pretende proibir o produto em questão. Mas
aí é outra história, como se verá.
O álcool canforado, então, era remédio pra tudo. O milagre desta
solução caseira se fazia ao jogar umas pedrinhas de cânfora no álcool bom,
de 96 G/L (92.8 INPM) - não esse gel a 46 G/L, usado para higienizar as
mãos em hospitais; tão fraquinho, mas tão fraquinho, que nem fogo acende.
Depois, o álcool forte servia para tudo: frieira, dedinho quebrado,
galo na cabeça, dor de ouvido, resfriado, mau jeito nas costas. Qualquer
coisa era tratada (e quase sempre curada) com álcool canforado.
Artrite, eis o exemplo da inflamação de uma articulação, quase
sempre causada por uma contusão: causa febre, língua branca, sede,
dor e inchaço da região afetada e insônia. A sabedoria popular sempre
recomendou aplicar cataplasma de linhaça ou de fécula de batata, banhos
quentes e fricção com álcool canforado. Tiro e queda.
Mas o álcool puro, como sabe toda boa dona de casa, é o número um
entre os produtos de higiene e limpeza. Não há mancha, qualquer que seja
a superfície, que resista ao álcool 96 G/L. Aquele cheiro ruim nas mãos,
louças e metais opacos, passa álcool. Sabão não tira, recorre ao álcool.
Conhecido pela Humanidade há mais de oito mil anos, o álcool
é usado em bebidas como cerveja, vinho ou cachaça e na indústria de
perfumaria. E, claro, como combustível – nesse caso, um bem para a
natureza, uma fonte de energia renovável, ao contrário dos derivados de
petróleo.
Evidente que o álcool, como bebida, é um perigo e vale o conselho:
moderação. Quando consumido em alta dosagem e por longos períodos,
causa a síndrome da dependência (conjunto de sintomas). Sabe-se como se
morre de cirrose e outras graves doenças.

Na Idade Média, os árabes introduziram na Europa a técnica da
destilação, ao mesmo tempo em que se disseminava, naquele ambiente
cultural, a crença de que o álcool era o remédio para todos os males. Hoje,
sabe-se que o uso terapêutico do álcool é muito reduzido, mas seu uso
social é imenso. E o alcoolismo nada cura, apenas apressa a caminhada
nesta passagem pela Terra. Não é o caso nem devemos misturar usos e
costumes entre o álcool caseiro e o das bebidas.
O fato é que a Anvisa investe mais uma vez e prega a abolição do
álcool 96 /GL para o público. Alega que a garrafa de álcool pode explodir
e causar sérios acidentes. Pessoas descuidadas essas que não sabem do
alto poder de combustão do produto. Como o leitor sabe bem, notícias
de acidentes com álcool são raríssimas: de minha bisa até os dias de hoje,
nenhum acidente ocorreu em nosso quintal.
A Anvisa deveria ampliar os horizontes de seu interesse, caso queira
mesmo proteger a saúde dos brasileiros: poderia começar por recomendar
a retirada das portas dos armários de cima das cozinhas - uma topada de
cabeça com a quina de uma porta é terrível. Mais ainda a trombada com
a quina de uma tampa de mármore da pia no banheiro, uma das causas
mais comuns de acidentes domésticos. Cuidado: tapetes na casa provocam
quedas. Então, que se proíbam os tapetes, ou as casas. Pelo menos o
quesito “moradia” seria banido das promessas eleitorais.
Medida ainda mais acertada seria proibir a bebida alcoólica no
País: o sistema nacional de saúde deixaria de gastar bilhões de reais no
tratamento dos bêbados. E a sociedade poderia respirar aliviada ao saber
que não será mais vítima desses assassinos que, embriagados, assumem
um volante e matam sem dó nem piedade. Já que a Lei Seca não resolve,
a Anvisa que faça valer o seu poder para preservar a integridade dos
cidadãos.
O Conselho Nacional de Saúde recomendou a aprovação do Projeto
de Lei nº 692/2007, que dispõe sobre restrições do acesso e venda do álcool
líquido de uso doméstico. O projeto está na Comissão de Constituição e
Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados. Seus argumentos:
-- em 2002, a Resolução RDC nº 46 da Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Anvisa) determinou a substituição do álcool líquido
acima de 46° de porcentagem de álcool em peso ou grau alcoólico
(INPM) pela versão gel e deu prazo de seis meses para os fabricantes se
adaptarem ao novo formato. No período em que o produto parou de ser
comercializado, o número de acidentes com álcool caiu 60%. O número de
internações hospitalares e a gravidade das queimaduras tiveram redução de
26%.
-- a medida foi suspensa por meio de liminar da justiça e assim é
necessária a regulamentação do tema na forma de lei. A norma contribuirá
para a preservação da vida de milhares de pessoas, entre elas crianças,

vítimas das graves queimaduras causadas pelo uso inadequado do álcool.
Mas a Nota Pública do CNS não informa a base de seus cálculos:
são números ridículos ou alarmantes comparados a outros acidentes
domésticos da população brasileira? Sem isso, os números apresentados
ficam sob suspeita. E suas intenções, mais ainda. Se o desejo é realmente
o de preservar vidas, que se proíbam todos os itens perigosos à venda no
varejo. Como facas ou desentupidores domésticos, desses à base de soda
cáustica, produto altamente corrosivo, que pode produzir queimaduras,
cicatrizes e cegueira. A soda cáustica está à venda livremente no comércio;
em supermercados, junto a produtos de limpeza.
Enfim, o que estranha é o casuísmo da proposta nesse quadro
nebuloso da burocracia petista.
E em vez do cheiro do álcool, a polêmica exala muito mais um
cheiro de lobby.

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