quinta-feira, 26 de julho de 2012

Quando o passado se faz presente

NOSSOS ROBÔS Primeira Lei da Robótica: Um robô não pode ferir um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra algum mal. Segunda Lei: Um robô deve obedecer as ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em que tais ordens contrariem a Primeira Lei. Terceira Lei: Um robô deve proteger sua própria existência, desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira e a Segunda Leis. Lei Zero: Um robô não pode causar mal à Humanidade ou, por omissão, permitir que a Humanidade sofra algum mal, nem permitir que ela própria o faça. O escritor Isaac Asimov concebeu as leis da robótica logo no primeiro dos 500 livros de ficção científica que escreveu ao longo de sua vida. Bioquímico, Asimov nasceu na União Soviética, mas sua família mudou-se para os Estados Unidos quando ele tinha apenas três anos. Seu livro mais conhecido é Eu Robô, onde a obediência às três primeiras leis conduzem todo o comportamento de seus personagens. A quarta lei seria incorporada mais tarde, com o avanço da tecnologia e seu uso cada vez mais intensivo para fins bélicos. É um livro imperdível e fonte de outros escritores de ficção científica. Todos os autores procuraram seguir as leis da robótica, menos um: o inglês Arthur Clarck violou os três mandamentos em 2001, uma Odisséia no Espaço, onde robôs começam a matar e a congelar os tripulantes da espaçonave. Mas no fim as leis prevalecem. Os robôs de Asimov começaram a ser concebidos ainda na década de 40, quando se supunha que um dia máquinas seriam aperfeiçoadas para substituir alguns trabalhos dos homens. Seus personagens são caricatos, servem café, limpam a casa, fazem ordem unida, marcham como se fossem soldados e obedecem cegamente aos humanos. Embora concebidos à imagem e semelhança do homem, são máquinas feitas em série, alimentadas por óleo cru e precisam de uma boa graxa para o bom funcionamento. E o limite de sua inteligência é estabelecido pelos humanos. Isaav Asimov impõe um ritmo forte de leitura e seus personagens entram e saem de cena com incrível rapidez. Chega um momento em que o leitor se perde, sem saber se entrou em cena um robô ou um ser humano de verdade, tamanha a semelhança que homens e máquinas vão adquirindo ao longo da narrativa. Asimov não foi o princípio nem o fim da ficção científica. Dizem que a busca pela perfeição das máquinas começou ainda em 1775, quando Aristóteles concebeu a primeira boneca mecânica. E ainda hoje os europeus são fascinados por pequenos brinquedos que executam funções humanas. Mas o fato é que o desenvolvimento da Humanidade se processa de forma tão rápida, que alguns livros de ficção científica ficam ultrapassados em pouco tempo. E é fato também que todos esses autores procuram no espaço algumas respostas para os conflitos e as contradições humanas, na eterna busca do desconhecido. Uma das lições de Asimov é a manipulação da inteligência e a fabricação em série de máquinas, da mesma forma como Henry Ford I concebeu a produção de automóveis numa cadeia de montagem e deu início ao moderno processo da era industrial. Os últimos anos de sua vida Asimov passou em palestras pelo mundo afora, explicando suas obras e discorrendo sobre a massificação do ensino, sua maior preocupação na velhice. Um paralelo entre seus personagens e os alunos que saem das faculdades como máquinas, sem talento ou criatividade para fugir daquele labirinto em que foram enfiados para uma lavagem cerebral. A maioria com idéias erradas e preconcebidas. Poucos são os que botam a cabeça para fora da mediocridade geral para tentar enxergar alguma coisa além do horizonte e se colocar no mercado de trabalho em melhores condições. Se essa massificação tem sido tão criticada em países do Primeiro Mundo, imagine-se no Brasil. O Direito é um exemplo. Alguns advogados, já com anos de carreira, mal conseguem de expressar, donde se conclui que podem ter decorado algumas leis, mas não assimilaram nem os rudimentos do português, essencial para quem precisa botar uma petição no papel. Fica difícil para os juízes tentar desvendar o que alguns advogados escrevem. Produzem um emaranhado de letras disformes e descosturadas, idéias confusas e sem nenhuma linha de raciocínio e, ao final, não se sabe se o nobre causídico deseja defender ou condenar seu prezado cliente. Na medicina, não é de hoje que se implora algumas aulas de caligrafia, para que os doutores façam alguma coisa diferente daquele monte de garranchos indecifráveis até para farmacêuticos. No jornalismo, então, nem se fala. Estudantes saem das escolas de comunicação como os soldados robôs de Asimov, produzindo textos iguais, os mesmos vícios, a mesma linguagem de décadas passadas. São jovens cheios de esperança no mercado de trabalho. E ao mesmo tempo tão pobres de idéias e de interesse pela própria profissão, como se o diploma lhes tivesse conferido o talento necessário para o sustento de suas vidas. Nem sabem ainda que só uma boa leitura fornece uma base sólida para suas carreiras. Na verdade, saem foquinhas, no ponto zero da profissão, porque passaram em média quatro anos aprendendo a fazer o que não se faz mais no jornalismo moderno. As empresas de comunicação até que gostam, porque são profissionais sem nenhum valor e aceitam qualquer salário aviltante. Assim se nivela tudo por baixo, a um custo desprezível. Nessa etapa, o importante é um emprego. Alguns pensam que o resto cai do céu. Toda profissão tem os seus robôs, aqueles seres que não conseguem enxergar um palmo à frente do nariz, mas por incompetência ou pobreza de espírito. Pior são jornalistas mais experientes, que se submetem à ditadura de maus patrões, que sequer lhes pagam o salário sagrado em dia, mas continuam a sugar o suor de seu rosto e exigir o trabalho em dobro, na falsa promessa de que um dia as coisas vão melhorar. Esses jornalistas, a esta altura, já perderam o gosto pela profissão e se deixam guiar como manada, ou perderam a capacidade de se indignar. E como desgraça pouca é bobagem, alguns senhores de engenho acham que podem adquirir a preços módicos a consciência de todos os jornalistas. É de um primarismo irritante. Eles não sabem que ficarão presos na memória das redações. É como jogar um bumerangue, e ele voltará certeiro na testa daquele que tentou desviar o profissional da conduta de servir ao seu leitor e à sociedade para o qual trabalha. Afinal, não se deve tentar calar o que foi feito para falar. Isso é próprio da natureza humana. Talvez não seja a dos robôs.

domingo, 8 de julho de 2012

Os grandes Atlético Mineiro e Seu Alcides Ornelas


Domingo é dia de futebol, Luciano está em frente a tv, achei bárbaro o texto abaixo, onde ele fala de sua paixões: futebol, família e trabalho. Sou fã.



LUCIANO ORNELAS


Para que o leitor tenha maior compreensão do que vem a ser a rivalidade entre Atlético e Cruzeiro, em Minas, é importante vasculhar corações mais apaixonados, daqueles que viram tudo nascer, como o meu pai. Vejam bem: o Arraial do Curral del Rei virou cidade de Belo Horizonte e capital do Estado em 1897, fundada por republicanos, que assim tiravam de Ouro Preto a honraria concedida pelos colonizadores.
O glorioso Atlético foi fundado em BH pouco tempo depois, em 1908, por um grupo de garotos que frequentava o Parque Municipal, no centro da cidade. Não os perigosos garotos de hoje, por certo. Meu pai Alcides nasceu na rua Platina, ao lado da igreja do Calafate, seis anos depois, em 1914. Assim, quando começou a entender das coisas, ainda menino, o Atlético já era o primeiro e único vencedor.
Mais tarde, ao contar aqueles anos de glória aos seus seis filhos, Alcides era frio, preciso. Na adolescência jogara no meio de campo pelo Tupinambá, “o melhor time da várzea da história de Belo Horizonte”. Volta e meia o Atlético convidava o Tupinambá para jogos-treino para testar seu poderio. E volta e meia o Tupinambá ganhava. Timaço.
O resto das informações sobre aquele tempo vinha de seus irmãos, tio Mário e tio Nélson:
-- Seu pai não conta direito, é modesto. Ele era um craque com a 10 ali no meio de campo, jogava “o fino”, elegante, não batia em ninguém e colocava a bola onde queria. Estilo Zizinho.
(Thomaz Soares da Silva, o Zizinho, foi um dos mais refinados deuses do futebol brasileiro nas décadas de 40 e 50. Entre outras coisas, ídolo de Pelé. Para encurtar essa história: o jornalista italiano Giordano Fatori, que veio cobrir a Copa de 1950 no Brasil para o jornal Gazzetta dello Sport escreveu: "O futebol de Zizinho me faz recordar Da Vinci pintando alguma coisa rara”. E o Brasil perdeu aquela Copa para o Uruguai com Zizinho e tudo).
De qualquer forma, exagero aquela comparação. Mas meus tios diziam que meu pai sabia de tudo dentro de campo. Seus conselhos a dois de seus filhos, Warley e Nivaldo, eram de muita sabedoria. Seu Alcides levava seus meninos a todos os jogos no campo do Atlético, na Colina de Lourdes. Lá embaixo, no Barro Preto, campo do Cruzeiro, não pisava.


Os de lá

Vale um registro: o Palestra Itália foi fundado em Belo Horizonte em 1921 por integrantes da colônia, como o Palmeiras em São Paulo. Em razão da guerra, mudou o nome em 1942 para Palestra Mineiro. E neste mesmo ano de 42 mudou o nome de novo para Cruzeiro Esporte Clube. Portanto, veio muito depois do Atlético. E se tinha essa crise de identidade em relação ao próprio nome, pode-se imaginar seu caráter vacilante. É possível que venha daí, e das surras inesquecíveis em campo, esse indisfarçável complexo de inferioridade que o Cruzeiro exibe diante do Atlético.


Os de cá

O futebol de várzea era exuberante no começo dos anos 60. Pontificavam grandes times como Monte Castelo, Atlético Suburbano, Cruzeiro do Sul, Hollywood, São Lourenço, Náutico, Benfica, Paulistano, Colombo. E na minha casa na rua Java, Nova Suíça, nasceu o Estrela Negra, que depois virou Ypiranga e desbancou todos os outros. Era imbatível – tinha um Wagner no gol, Warley e Nélson Bochecha no meio de campo, Vladimir de centroavante e o Nivaldo na esquerda. Este, um exímio driblador – fazia um carnaval ali no seu canto, com dribles curtos de futebol de salão. O futebol perdeu-o para a noite – sua vocação era a música.   
Ainda menino, Warley jogava muito como centro-médio do Estrela Negra (essa história de volante veio depois). Tão bem que foi “comprado” pelo Náutico. Valor do passe: um fogão de duas bocas. O presidente do Estrela Negra não admitia a traição, chorava de raiva: era o irmão mais velho, o Nilton. Pois é, na várzea também corria um dinheirinho por fora, nenhuma inocência.
Warley jogou por outros times, voltou ao Ypiranga e dali para o juvenil do Atlético. No meio de campo, insistia meu pai, de peito estufado, orgulhoso.
E mesmo no Atlético o centro-médio continuava a promissora carreira de repórter; era preciso trabalhar. Primeiro na sucursal mineira da Última Hora, depois revista Alterosa, depois Correio de Minas. Na revista, teve uma desavença com seu chefe Roberto Drummond e foi demitido. Vidas cruzadas: logo o Roberto, que fez de mim um repórter na Última Hora. Enfim, desempregado, Warley aceitou o convite do Atlético e se tornou profissional.
Também fiquei desempregado: os golpistas de 64 fecharam a Última Hora. E todos os que estávamos na redação naquela tarde de 4 de abril fomos parar nos porões do Dops, na avenida Afonso Pena. Mais tarde fui admitido como repórter no esporte do Diário de Minas.



Sai da frente


Não era fácil a vida de repórter esportivo com meu irmão ali na lateral-esquerda, posição que aceitou para jogar no time de cima, apesar do inconformismo do meu pai. “Que esperasse uma vaga no meio de campo, ora”, esbravejava. Beleza a vida de jogador: logo apareceu um Fusca novo, uma profusão de discos, roupas de grife, mulheres batiam à nossa porta.
Mocinhas de fino trato compareciam muito aos treinos, que eu cobria. Num deles, no Mineirão ainda em obras, uma lourinha roliça veio falar comigo. Digo melhor, assediar. Dizia-se fã do Warley e conversa vai, conversa vem, terminamos numa depressão do terreno lá fora do estádio. Logo estávamos enroscados, mas juro de pés juntos: não levei aquela aventura até o gol, apesar da oferta escancarada. Meu anjo da guarda estava de prontidão.
Fato é que, umas duas semanas depois, a lourinha surgiu no portão de casa e chamou meu pai. Contou que estava grávida e eu era o pai. Seu Alcides me chamou num canto. Confessei que dera uns amassos, nada mais. Então, com aquela cara de rottweiler rosnando, voltou ao portão:
-- Passa fora, menina. Não vem dar o golpe da barriga aqui não.
Nunca mais vi tal garota. Donde se conclui que essa história de maria-chuteira vem de muito longe, desde que o jogo é jogo.
Nos gramados Warley pontificava, o Atlético tinha um bom time e o Cruzeiro respeitava. Prova disso eram as entrevistas de seus jogadores antes dos clássicos de domingo. Numa delas, o repórter de rádio Dirceu Pereira perguntou ao centroavante Paulão quantos gols pretendia fazer no Atlético no jogo de domingo. Direto, no ar:
-- Sacumé, né Dirceu, a gente não pode contar com o ovo no c... da galinha.
Foras como esse a gente ouvia direto pelo rádio. O Cafunga, por exemplo: um dos maiores goleiros da história do Atlético tornara-se comentarista da rádio Guarani, na qual trabalhei também. Gostava de uma cervejinha, é verdade. O caso é que num Atlético e Cruzeiro houve uma tremenda confusão na área do Atlético e o locutor chamou o comentário do Cafunga:
-- Xiii, embucetou tudo ali na área.
Silêncio na cabine. Diante da perplexidade dos colegas ao lado, Cafunga tratou de aliviar:
-- Embucetou no bom sentido.  
 Na arquibancada meu pai oscilava entre a euforia e a depressão. De olhos esbugalhados, berrava e chutava o vento como se estivesse na lateral-esquerda. Pobre do correligionário atleticano que se sentasse à frente na arquibancada. Levaria um pontapé, depois um “desculpe” acompanhado de um tapinha no ombro. Os gritos não condiziam muito com o passado do elegante Zizinho da Nova Suíça:
-- Quebra a perna dele, Warley. E eu não falo? Tem de jogar no meio do campo, lateral precisa bater, sô!”
Mas o filho mantinha na lateral a mesma classe do centro-médio. Não era como os zagueiros do Atlético, que tinham como filosofia de vida bater da medalhinha para cima.
Sorte é que alguns juízes apitavam com o coração atleticano, como o Cidinho Bola Nossa e o Quinquim Carijó. Quando um becão nosso jogava um atacante adversário a três, quatro metros de altura, o Quinquim ou o Cidinho faziam o sinal de siga com a mão, joga o jogo, que futebol é pra homem.
Do outro lado, quando os zagueiros adversários chegavam perto de nossos atacantes, apitavam sem pestanejar, de preferência um pênalti. Afinal, futebol é pra homem – não para animais. Muito justo.
Ainda em 1965, pouco antes da inauguração do Mineirão, em setembro, o Cruzeiro começou a formar aquele timaço com Piazza, Zé Carlos, Dirceu Lopes, Natal, Tostão, Evaldo e Hílton Oliveira. E meu irmão Warley ali, na lateral do Atlético. O Cruzeiro já era então badalado, começaram a elogiar. Meu pai, não, e aí sobrava também para o meu lado:
-- O time deles é bonzinho, mas não é tudo isso que vocês da Imprensa falam, não. Dão é muita sorte, e ainda tem juiz roubando pra eles.
De fato. O leitor vai entender melhor a história neste relato do próprio Warley:
“Foi a primeira briga no Mineirão, inaugurado três anos antes, em 1965. O Atlético precisava do empate para ser campeão do returno e disputar o título com o Cruzeiro, campeão do turno. Aos 36 minutos do segundo tempo, o Décio Teixeira fez uma falta no Wilson Almeida, pelo menos um metro fora da área. (As tevês mostraram isso várias vezes nos dias seguintes). O juiz, o uruguaio Juan de La Passion Artez, conhecido cruzeirense, marcou pênalti. Os jogadores que estavam em campo, os que estavam no banco (entre eles, eu) e mais o Marcelo Guzela, diretor de futebol, partiram para cima do juiz. A PM entrou em campo para protegê-lo e fez uma barreira humana para que ninguém chegasse perto. Passei por trás do gol sem que a PM me visse e consegui chegar até o juiz. Dei-lhe um soco na boca e o sangue começou a jorrar. A PM passou a me perseguir, queria me prender. De chuteira na mão, corri para o vestiário, onde o Zé das Camisas me aconselhou a entrar num dos escaninhos. O Toninho “Catimba”, querendo me ajudar, trombou com um PM propositalmente, seu capacete caiu. O PM parou para pegá-lo e o Toninho saiu chutando-o como se fosse uma bola. A torcida foi ao delírio. Não sei como consegui entrar naquele escaninho tão pequeno para uma pessoa e me esconder. A  PM não me achou. Na semana seguinte, eu, o Buglê, o Vander e o Grapete fomos suspensos por nove meses. Os outros jogadores tiveram penas mais brandas. O pênalti não foi batido e o jogo acabou, pois o Atlético ficou sem número mínimo de jogadores para continuar a partida. E o Cruzeiro foi declarado campeão”.
Perceberam os leitores a maneira como o Cruzeiro conseguia seus títulos? Warley virou herói - fez o que todo atleticano gostaria de fazer: enfiar a mão no safado do uruguaio. 
Todos em casa queríamos conversar com Warley depois dos jogos. Ele, não, sabia que a cobrança seria dura (“porque não chutou aquele Natal para a arquibancada, meu filho?”) O lateral entrava sério pela copa, levantava as duas mãos e repetia:
-- Fura a bola, fura a bola.
Meu pai então colava o radinho no ouvido, não perdia um só programa de esportes. E lia todos os jornais no dia seguinte. Eu sabia que sobraria para mim depois de ler meu comentário no Diário de Minas:
-- Pô, seu irmão não jogou tão mal assim...
É, tinha isso, eu não refrescava nada.

Dois campeões
Se aquele timão do Cruzeiro foi campeão do Brasil em 1966, e ganhou a final contra o Santos de Pelé no Pacaembu, o Atlético deu o troco em 1971: primeiro campeão do Brasileirão, 1 a 0 no Botafogo, no Maracanã. Se eles tinham Tostão, tínhamos o Dadá Maravilha e ponto final.
A esta altura eu já estava em São Paulo, no Jornal da Tarde, e o Warley foi para os Estados Unidos com um grupo de jogadores mineiros. Salário magro (mil dólares por mês, mais casa, comida, roupa lavada e a passagem de ida e volta, pois nunca se sabe). Foram jogar no Fall River, representante de Massachusets no campeonato dos EUA. E completavam o salário trabalhando como garçons, em empresas de limpeza, auxiliares de cozinha, essas coisas. Levaram sonhos de riqueza e voltaram pobres. Hoje, qualquer perna-de-pau volta de bolso cheio. Nessa Warley levou vantagem, trouxe conhecimento: conseguiu uma espécie de estágio e por oito meses acompanhou um repórter mexicano que cobria sindicatos para o Boston Herald. Quando voltou, veio trabalhar no Estadão, onde ficou trinta anos.
Eu já não ia tanto a Belo Horizonte, mas ligava todo domingo à noite para a família. Ao falar com meu pai, era só queixume quando o time perdia:
-- Não me fale de futebol, filho, não quero falar de futebol. É um time fédaputa, com técnico fédaputa e uma diretoria fédaputa.
(O leitor há de perdoar a ousadia do palavrão. Mas se Garcia Marquez pode, com suas Putas Tristes, a memória de meu pai também pode).
Não queria, mas ele ficava de 15 a 20 minutos a falar de futebol, destilava ódio e sentia-se traído na sua paixão. O time melhorou muito algum tempo depois com Vantuir, Toninho Cerezo, Reinaldo, Ângelo, Paulo Isidoro e outros craques. Em 1977 fez a melhor campanha do Brasileirão, com nove pontos à frente do segundo colocado, o São Paulo: fariam a final dia 5 de março de 78 no Mineirão.
Na véspera, sábado, recebi a notícia de que minha mãe havia fraturado a perna num acidente doméstico. Voei para Belo Horizonte, mas foi irritante atravessar a cidade da Pampulha até o hospital Sara Kubistcheck, na avenida Amazonas. A torcida do Atlético já comemorava o título, carros com bandeira atleticana desfilavam numa correria desenfreada, fora o buzinaço de enlouquecer naquela noite. Do quarto do hospital ouvíamos aquele barulho infernal e meu pai previu:
-- Parece a final da Copa de 50. Esse negócio de comemorar antes dá um azar danado, sô.
Não deu outra: o São Paulo segurou o zero a zero até a prorrogação e ganhou nos pênaltis. Foi o famoso jogo em que o criminoso do Neca quebrou a perna do Ângelo; e o Chicão ainda pisou na perna quebrada. O juiz Arnaldo César Coelho “não viu nada”. Agora, sem caráter era o Atlético: contratou Chicão.
O Galo voltou a disputar o título do Brasileirão em 1980 e perdeu a final para o Flamengo.
Nos anos 2000 o time já vinha mal das pernas. Abandonou a política de formar jogadores em casa e passou a trazer mequetrefes de fora. Meu pai insistia:
-- Essa diretoria não vale nada.
Seu Alcides, nas noites de domingo, já abatido pela doença, parou de falar em futebol. Também, pudera. O Atlético quase caiu para a segunda divisão em 2004; em 2005 conseguiu. Disputou e ganhou a Série B de 2006 e a torcida comemorou como se fosse o título da Série A. Meu pai não faria isso.
Ele morreu dia 3 de junho de 2006, dez dias antes de completar 70 anos de casado. Era um homem fiel, e minha mãe correspondeu. O outro amor, o Galo, não.  
    
  

Capa Especial


A casa da ganância

Em ano de eleição, é bom lembrar de fatos antigos, com novos personagens, a história é a mesma:



A casa da ganância



A Câmara Municipal de Mogi das Cruzes raramente trabalha a favor do povo que a elege; são poucas as ideias para tentar melhorar a qualidade de vida dos cidadãos desta cidade. Basta uma olhada no conjunto da obra dos vereadores, ano a ano, para verificar que as senhoras e os senhores eleitos de forma democrática se empenharam muito mais na distribuição de títulos disso e daquilo, em dar nome de ruas e carimbar às vezes sem ler os projetos encaminhados pelo Executivo.
Com as exceções que confirmam a regra, a Câmara de Mogi é apenas um prédio em forma de pirâmide cortada ao meio, ou um deserto de homens e idéias. O seu recheio costuma ser vazio como pastel de vento. Como eles próprios reconhecem, o trabalho mais importante é prestar assistencialismo, que pode ser traduzido por clientelismo em troca de votos nas próximas eleições.
É a velha maldição da política velha que se multiplica, a maior responsável pelo atraso e pela miséria crescente do País, um tipo de mentalidade que sobrevive às custas do povo carente, sempre de boquinha aberta à espera das migalhas que caem da mesa farta dos políticos. Essa mesma política tacanha que se forma nos municípios é a que ocupará depois as assembléias, o Congresso Nacional e os principais cargos executivos para perpetuar os contrastes sociais e este enorme depósito de injustiças chamado Brasil.
As pessoas até fazem fila na Câmara para pedir emprego, implorar uma consulta médica ou os serviços de ambulância, todas essas coisas que os Executivos têm obrigação de fornecer e que os cidadãos desvalidos nem sabem. Democracia, para a parcela mais pobre e menos informada da população, se resume a esse tipo de mendicância, um jogo de camisa de futebol ou uma caneta vagabunda em troca de voto.
É por isso que o trabalho dos vereadores se assemelha ao de despachante de luxo, embora sem nenhum compromisso de entregar os serviços pelos quais são pagos. Mas os eleitos batem no peito, se dizem amigos do prefeito e dos secretários, se colocam à disposição para mandar tapar buraco de rua, conseguir uma consulta, asfalto ou uma lombada, trabalho sempre dirigido àqueles que lhes ajudaram na eleição. São apenas intermediários e oferecem promessas em troca de um grande futuro. Os seus próprios.
 Poucos se dão conta de que a responsabilidade da Câmara vai muito além de seus interesses mesquinhos e de sua clientela. São poucos também os que conhecem o significado da representação popular, conforme o aplicado nas democracias mais sérias e avançadas do mundo. Uma vez eleitos, deveriam voltar seu esforço para o conjunto da população, para o avanço da comunidade e pelo bem comum, além de fiscalizar e dar suporte necessário para que o Executivo exerça seu poder com mais equilíbrio e eficiência.
Não se pede, obviamente, que isto se traduza em oposição. Muito menos naquela oposição burra, sectária e ideológica de ser contra qualquer coisa só para dar uma satisfação aos eleitores, como Lula e o PT foram um dia. Pede-se seriedade, e isto quer dizer atenção aos projetos do Executivo, preparo para aperfeiçoá-los, além, é claro, de iniciativas para criar um conjunto de leis em benefício dos moradores. 
Em Mogi, talvez por carência intelectual ou deformação natural, bate-se o carimbo no que chega e pronto, está dada a moeda de troca de futuros favores, tipo balcão de negócios. Ora, a Prefeitura não produz a perfeição nem o prefeito Junji Abe pode se acreditar onisciente, onipresente e onipotente. Ao contrário, deveria ficar muito feliz se a Câmara fosse parceira confiável e trabalhasse em conjunto pelo bem da cidade, em vez de apenas dizer amém a tudo.
Mas seria pedir demais a uma Câmara Municipal que corteja a política velha, que adora mamar no dinheiro dos impostos da população sem lhe dar nada em troca além de demagogia barata, desse tipo de gente que trata o dinheiro público como se fosse propriedade particular.
A entrevista que publicamos ontem do novo presidente da Câmara, Rubens Benedito Fernandes, o Bibo do PP, é desalentadora. Traduz o velho na política, a ausência do espírito público despojado, e desfaz mais uma vez aquela ansiedade de ver os costumes políticos moralizados neste País.
O novo presidente da Câmara é a favor do quinto assessor para os vereadores. Provavelmente não entendeu o espírito da decisão do Judiciário, que pretendeu fazer uma economia para o povo ao reduzir o número de vereadores. Bibo ainda não consegue compreender que o povo brasileiro é pobre demais para sustentar uma politicalha tão cínica e abastada, especialmente em municípios como Mogi, onde a renda média do trabalhador é tão baixa.
Claro, ele também é a favor do aumento do próprio salário e quanto mais mordomia vier, pois foi eleito, junto com seus colegas, apenas para as delícias do poder. Não consegue perceber, o nobre vereador, que seus pouco mais de cinco mil votos não podem valer mais que a vontade dos 231 mil eleitores de Mogi. Portanto, deve abrir os olhos quando pensa legislar em causa própria, ou bolso próprio, sem nenhum respeito à entidade pública que passa a representar.
Neste momento em que a Prefeitura começa a dar exemplos de austeridade e busca economizar enquanto melhora a eficiência dos serviços para a população, o novo presidente da Câmara segue o caminho inverso e prega a gastança, como se o dinheiro de seus próprios eleitores não tivesse dono. 
Naquela Casa, alguns nomes mudaram, mas os costumes continuam velhos e gananciosos como sempre. E o jeito malufista de sobreviver na política assume o comando do negócio.
O povo de Mogi não merece.