Domingo é dia de futebol, Luciano está em frente a tv, achei bárbaro o texto abaixo, onde ele fala de sua paixões: futebol, família e trabalho. Sou fã.
LUCIANO
ORNELAS
Para
que o leitor tenha maior compreensão do que vem a ser a rivalidade entre
Atlético e Cruzeiro, em Minas, é importante vasculhar corações mais
apaixonados, daqueles que viram tudo nascer, como o meu pai. Vejam bem: o
Arraial do Curral del Rei virou cidade de Belo Horizonte e capital do Estado em
1897, fundada por republicanos, que assim tiravam de Ouro Preto a honraria
concedida pelos colonizadores.
O
glorioso Atlético foi fundado em BH pouco tempo depois, em 1908, por um grupo
de garotos que frequentava o Parque Municipal, no centro da cidade. Não os perigosos
garotos de hoje, por certo. Meu pai Alcides nasceu na rua Platina, ao lado da
igreja do Calafate, seis anos depois, em 1914. Assim, quando começou a entender
das coisas, ainda menino, o Atlético já era o primeiro e único vencedor.
Mais
tarde, ao contar aqueles anos de glória aos seus seis filhos, Alcides era frio,
preciso. Na adolescência jogara no meio de campo pelo Tupinambá, “o melhor time
da várzea da história de Belo Horizonte”. Volta e meia o Atlético convidava o
Tupinambá para jogos-treino para testar seu poderio. E volta e meia o Tupinambá
ganhava. Timaço.
O
resto das informações sobre aquele tempo vinha de seus irmãos, tio Mário e tio
Nélson:
--
Seu pai não conta direito, é modesto. Ele era um craque com a 10 ali no meio de
campo, jogava “o fino”, elegante, não batia em ninguém e colocava a bola onde
queria. Estilo Zizinho.
(Thomaz Soares da Silva, o Zizinho, foi
um dos mais refinados deuses do futebol brasileiro nas décadas de 40 e 50.
Entre outras coisas, ídolo de Pelé. Para encurtar essa história: o jornalista
italiano Giordano Fatori, que veio cobrir a Copa de 1950 no Brasil para o
jornal Gazzetta dello Sport
escreveu: "O futebol de Zizinho me faz recordar Da Vinci pintando alguma
coisa rara”. E o Brasil perdeu aquela Copa para o Uruguai com Zizinho e tudo).
De
qualquer forma, exagero aquela comparação. Mas meus tios diziam que meu pai
sabia de tudo dentro de campo. Seus conselhos a dois de seus filhos, Warley e
Nivaldo, eram de muita sabedoria. Seu Alcides levava seus meninos a todos os
jogos no campo do Atlético, na Colina de Lourdes. Lá embaixo, no Barro Preto,
campo do Cruzeiro, não pisava.
Os de lá
Vale
um registro: o Palestra Itália foi fundado em Belo Horizonte em
1921 por integrantes da colônia, como o Palmeiras em São Paulo. Em razão
da guerra, mudou o nome em 1942 para Palestra Mineiro. E neste mesmo ano de 42
mudou o nome de novo para Cruzeiro Esporte Clube. Portanto, veio muito depois
do Atlético. E se tinha essa crise de identidade em relação ao próprio nome,
pode-se imaginar seu caráter vacilante. É possível que venha daí, e das surras
inesquecíveis em campo, esse indisfarçável complexo de inferioridade que o Cruzeiro
exibe diante do Atlético.
Os de cá
O
futebol de várzea era exuberante no começo dos anos 60. Pontificavam grandes
times como Monte Castelo, Atlético Suburbano, Cruzeiro do Sul, Hollywood, São
Lourenço, Náutico, Benfica, Paulistano, Colombo. E na minha casa na rua Java,
Nova Suíça, nasceu o Estrela Negra, que depois virou Ypiranga e desbancou todos
os outros. Era imbatível – tinha um Wagner no gol, Warley e Nélson Bochecha no
meio de campo, Vladimir de centroavante e o Nivaldo na esquerda. Este, um
exímio driblador – fazia um carnaval ali no seu canto, com dribles curtos de
futebol de salão. O futebol perdeu-o para a noite – sua vocação era a música.
Ainda
menino, Warley jogava muito como centro-médio do Estrela Negra (essa história
de volante veio depois). Tão bem que foi “comprado” pelo Náutico. Valor do
passe: um fogão de duas bocas. O presidente do Estrela Negra não admitia a
traição, chorava de raiva: era o irmão mais velho, o Nilton. Pois é, na várzea
também corria um dinheirinho por fora, nenhuma inocência.
Warley
jogou por outros times, voltou ao Ypiranga e dali para o juvenil do Atlético.
No meio de campo, insistia meu pai, de peito estufado, orgulhoso.
E
mesmo no Atlético o centro-médio continuava a promissora carreira de repórter;
era preciso trabalhar. Primeiro na sucursal mineira da Última Hora, depois revista Alterosa,
depois Correio de Minas. Na revista, teve
uma desavença com seu chefe Roberto Drummond e foi demitido. Vidas cruzadas: logo
o Roberto, que fez de mim um repórter na Última
Hora. Enfim, desempregado, Warley aceitou o convite do Atlético e se tornou
profissional.
Também
fiquei desempregado: os golpistas de 64 fecharam a Última Hora. E todos os que estávamos na redação naquela tarde de 4
de abril fomos parar nos porões do Dops, na avenida Afonso Pena. Mais tarde fui
admitido como repórter no esporte do Diário
de Minas.
Sai da frente
Não
era fácil a vida de repórter esportivo com meu irmão ali na lateral-esquerda,
posição que aceitou para jogar no time de cima, apesar do inconformismo do meu
pai. “Que esperasse uma vaga no meio de campo, ora”, esbravejava. Beleza a vida
de jogador: logo apareceu um Fusca novo, uma profusão de discos, roupas de
grife, mulheres batiam à nossa porta.
Mocinhas
de fino trato compareciam muito aos treinos, que eu cobria. Num deles, no Mineirão
ainda em obras, uma lourinha roliça veio falar comigo. Digo melhor, assediar.
Dizia-se fã do Warley e conversa vai, conversa vem, terminamos numa depressão
do terreno lá fora do estádio. Logo estávamos enroscados, mas juro de pés
juntos: não levei aquela aventura até o gol, apesar da oferta escancarada. Meu
anjo da guarda estava de prontidão.
Fato
é que, umas duas semanas depois, a lourinha surgiu no portão de casa e chamou
meu pai. Contou que estava grávida e eu era o pai. Seu Alcides me chamou num
canto. Confessei que dera uns amassos, nada mais. Então, com aquela cara de
rottweiler rosnando, voltou ao portão:
--
Passa fora, menina. Não vem dar o golpe da barriga aqui não.
Nunca
mais vi tal garota. Donde se conclui que essa história de maria-chuteira vem de
muito longe, desde que o jogo é jogo.
Nos
gramados Warley pontificava, o Atlético tinha um bom time e o Cruzeiro
respeitava. Prova disso eram as entrevistas de seus jogadores antes dos
clássicos de domingo. Numa delas, o repórter de rádio Dirceu Pereira perguntou
ao centroavante Paulão quantos gols pretendia fazer no Atlético no jogo de
domingo. Direto, no ar:
--
Sacumé, né Dirceu, a gente não pode contar com o ovo no c... da galinha.
Foras
como esse a gente ouvia direto pelo rádio. O Cafunga, por exemplo: um dos
maiores goleiros da história do Atlético tornara-se comentarista da rádio
Guarani, na qual trabalhei também. Gostava de uma cervejinha, é verdade. O caso
é que num Atlético e Cruzeiro houve uma tremenda confusão na área do Atlético e
o locutor chamou o comentário do Cafunga:
--
Xiii, embucetou tudo ali na área.
Silêncio
na cabine. Diante da perplexidade dos colegas ao lado, Cafunga tratou de
aliviar:
--
Embucetou no bom sentido.
Na arquibancada meu pai oscilava entre a
euforia e a depressão. De olhos esbugalhados, berrava e chutava o vento como se
estivesse na lateral-esquerda. Pobre do correligionário atleticano que se
sentasse à frente na arquibancada. Levaria um pontapé, depois um “desculpe”
acompanhado de um tapinha no ombro. Os gritos não condiziam muito com o passado
do elegante Zizinho da Nova Suíça:
--
Quebra a perna dele, Warley. E eu não falo? Tem de jogar no meio do campo,
lateral precisa bater, sô!”
Mas
o filho mantinha na lateral a mesma classe do centro-médio. Não era como os
zagueiros do Atlético, que tinham como filosofia de vida bater da medalhinha
para cima.
Sorte
é que alguns juízes apitavam com o coração atleticano, como o Cidinho Bola
Nossa e o Quinquim Carijó. Quando um becão nosso jogava um atacante adversário
a três, quatro metros de altura, o Quinquim ou o Cidinho faziam o sinal de siga
com a mão, joga o jogo, que futebol é pra homem.
Do
outro lado, quando os zagueiros adversários chegavam perto de nossos atacantes,
apitavam sem pestanejar, de preferência um pênalti. Afinal, futebol é pra homem
– não para animais. Muito justo.
Ainda
em 1965, pouco antes da inauguração do Mineirão, em setembro, o Cruzeiro
começou a formar aquele timaço com Piazza, Zé Carlos, Dirceu Lopes, Natal,
Tostão, Evaldo e Hílton Oliveira. E meu irmão Warley ali, na lateral do
Atlético. O Cruzeiro já era então badalado, começaram a elogiar. Meu pai, não,
e aí sobrava também para o meu lado:
--
O time deles é bonzinho, mas não é tudo isso que vocês da Imprensa falam, não.
Dão é muita sorte, e ainda tem juiz roubando pra eles.
De
fato. O leitor vai entender melhor a história neste relato do próprio Warley:
“Foi a primeira briga no Mineirão, inaugurado três anos
antes, em 1965. O Atlético precisava do empate para ser campeão do returno e
disputar o título com o Cruzeiro, campeão do turno. Aos 36 minutos do segundo
tempo, o Décio Teixeira fez uma falta no Wilson Almeida, pelo menos um metro
fora da área. (As tevês mostraram isso várias vezes nos dias seguintes). O
juiz, o uruguaio Juan de La
Passion Artez, conhecido cruzeirense, marcou pênalti. Os
jogadores que estavam em campo, os que estavam no banco (entre eles, eu) e mais
o Marcelo Guzela, diretor de futebol, partiram para cima do juiz. A PM entrou
em campo para protegê-lo e fez uma barreira humana para que ninguém chegasse
perto. Passei por trás do gol sem que a PM me visse e consegui chegar até o
juiz. Dei-lhe um soco na boca e o sangue começou a jorrar. A PM passou a me
perseguir, queria me prender. De chuteira na mão, corri para o vestiário, onde
o Zé das Camisas me aconselhou a entrar num dos escaninhos. O Toninho
“Catimba”, querendo me ajudar, trombou com um PM propositalmente, seu capacete
caiu. O PM parou para pegá-lo e o Toninho saiu chutando-o como se fosse uma
bola. A torcida foi ao delírio. Não sei como consegui entrar naquele escaninho
tão pequeno para uma pessoa e me esconder. A PM não me achou. Na semana seguinte, eu, o
Buglê, o Vander e o Grapete fomos suspensos por nove meses. Os outros jogadores
tiveram penas mais brandas. O pênalti não foi batido e o jogo acabou, pois o
Atlético ficou sem número mínimo de jogadores para continuar a partida. E o
Cruzeiro foi declarado campeão”.
Perceberam os leitores a maneira como o Cruzeiro conseguia
seus títulos? Warley virou herói - fez o que todo atleticano gostaria de fazer:
enfiar a mão no safado do uruguaio.
Todos em casa queríamos conversar com Warley depois dos
jogos. Ele, não, sabia que a cobrança seria dura (“porque não chutou aquele
Natal para a arquibancada, meu filho?”) O lateral entrava sério pela copa,
levantava as duas mãos e repetia:
-- Fura a bola, fura a bola.
Meu pai então colava o radinho no ouvido, não perdia um só
programa de esportes. E lia todos os jornais no dia seguinte. Eu sabia que
sobraria para mim depois de ler meu comentário no Diário de Minas:
-- Pô, seu irmão não jogou tão mal assim...
É, tinha isso, eu não refrescava nada.
Dois campeões
Se aquele timão do Cruzeiro foi campeão do Brasil em 1966, e
ganhou a final contra o Santos de Pelé no Pacaembu, o Atlético deu o troco em
1971: primeiro campeão do Brasileirão, 1 a 0 no Botafogo, no Maracanã. Se eles tinham
Tostão, tínhamos o Dadá Maravilha e ponto final.
A esta altura eu já estava em São Paulo, no Jornal da Tarde, e o Warley foi para os
Estados Unidos com um grupo de jogadores mineiros. Salário magro (mil dólares
por mês, mais casa, comida, roupa lavada e a passagem de ida e volta, pois
nunca se sabe). Foram jogar no Fall River, representante de Massachusets no
campeonato dos EUA. E completavam o salário trabalhando como garçons, em empresas
de limpeza, auxiliares de cozinha, essas coisas. Levaram sonhos de riqueza e
voltaram pobres. Hoje, qualquer perna-de-pau volta de bolso cheio. Nessa Warley
levou vantagem, trouxe conhecimento: conseguiu uma espécie de estágio e por
oito meses acompanhou um repórter mexicano que cobria sindicatos para o Boston Herald. Quando voltou, veio
trabalhar no Estadão, onde ficou trinta anos.
Eu já não ia tanto a Belo Horizonte, mas ligava todo domingo
à noite para a família. Ao falar com meu pai, era só queixume quando o time
perdia:
-- Não me fale de futebol, filho, não quero falar de
futebol. É um time fédaputa, com técnico fédaputa e uma diretoria fédaputa.
(O leitor há de perdoar a ousadia do palavrão. Mas se Garcia
Marquez pode, com suas Putas Tristes, a memória de meu pai também pode).
Não queria, mas ele ficava de 15 a 20 minutos a falar de
futebol, destilava ódio e sentia-se traído na sua paixão. O time melhorou muito
algum tempo depois com Vantuir, Toninho Cerezo, Reinaldo, Ângelo, Paulo Isidoro
e outros craques. Em 1977 fez a melhor campanha do Brasileirão, com nove pontos
à frente do segundo colocado, o São Paulo: fariam a final dia 5 de março de 78
no Mineirão.
Na véspera, sábado, recebi a notícia de que minha mãe havia
fraturado a perna num acidente doméstico. Voei para Belo Horizonte, mas foi
irritante atravessar a cidade da Pampulha até o hospital Sara Kubistcheck, na
avenida Amazonas. A torcida do Atlético já comemorava o título, carros com
bandeira atleticana desfilavam numa correria desenfreada, fora o buzinaço de
enlouquecer naquela noite. Do quarto do hospital ouvíamos aquele barulho
infernal e meu pai previu:
-- Parece a final da Copa de 50. Esse negócio de comemorar
antes dá um azar danado, sô.
Não deu outra: o São Paulo segurou o zero a zero até a
prorrogação e ganhou nos pênaltis. Foi o famoso jogo em que o criminoso do Neca
quebrou a perna do Ângelo; e o Chicão ainda pisou na perna quebrada. O juiz
Arnaldo César Coelho “não viu nada”. Agora, sem caráter era o Atlético:
contratou Chicão.
O Galo voltou a disputar o título do Brasileirão em 1980 e
perdeu a final para o Flamengo.
Nos anos 2000 o time já vinha mal das pernas. Abandonou a
política de formar jogadores em casa e passou a trazer mequetrefes de fora. Meu
pai insistia:
-- Essa diretoria não vale nada.
Seu Alcides, nas noites de domingo, já abatido pela doença,
parou de falar em
futebol. Também, pudera. O Atlético quase caiu para a segunda
divisão em 2004; em 2005 conseguiu. Disputou e ganhou a Série B de 2006 e a
torcida comemorou como se fosse o título da Série A. Meu pai não faria isso.
Ele morreu dia 3 de junho de 2006, dez dias antes de
completar 70 anos de casado. Era um homem fiel, e minha mãe correspondeu. O
outro amor, o Galo, não.